quinta-feira, 20 de novembro de 2025

🎬 Crítica Técnica: Todo Tempo que Temos (John Crowley, 2024)

 🎬 Crítica Técnica: Todo Tempo que Temos (John Crowley, 2024), por Daniel Esteves de Barros.


Nota: ★★★★ (4/5)



É, aconteceu de novo! Outra produção a qual este que vos escreve assiste descarada e unicamente por ser protagonizada por Florence Pugh! Todavia, aqui, consigo fazer um mea culpa: havia um interesse técnico, a montagem sintática de Justine Wright, que explora, de forma não linear, as diversas fases da vida do casal formado pela já mencionada atriz e por Andrew Garfield;


Aliás, Todo Tempo que Temos é um belíssimo exemplo de que uma obra fílmica eficiente deve focar, antes da trama a ser narrada, no modo como ela será desenvolvida por sua estrutura narrativa, evidenciando que, em um filme, a forma de contar a história é sempre mais relevante do que o conteúdo que ela carrega. 


Dirigido por John Crowley e protagonizado por Florence Pugh e Andrew Garfield, a produção se apresenta como uma reflexão sobre o tempo, o amor e as adversidades, utilizando a já mencionada montagem não linear e os elementos visuais como ferramentas primordiais para contar sua história.


Montagem Não Linear e Estrutura Narrativa


O primeiro grande lampejo técnico de Todo Tempo que Temos é a sua montagem, assinada por Justine Wright. O trabalho não linear é uma escolha arriscada, mas perfeitamente adequada para a proposta do filme, o que o impede de cair na armadilha da monotonia. Como uma obra de estrutura episódica, o filme poderia facilmente se perder na repetição, mas, ao optar por alternar entre os momentos felizes e os mais apreensivos, ele mantém a tensão e o envolvimento do público, ao mesmo tempo em que explora as diferentes fases da vida do casal, Almut (Pugh) e Tobias (Garfield).


É interessante notar que, ao contrário do que poderíamos esperar de um filme sobre a luta contra uma doença, o foco não está na enfermidade em si, mas sim no relacionamento dos personagens e nas decisões que eles tomam sobre como viver da melhor forma possível com o tempo que lhes é dado. A doença de Almut é quase secundária, o que é uma escolha surpreendentemente sagaz, pois a produção evita de se tornar uma história de sofrimento e lágrimas no estilo de A Culpa é das Estrelasou A Cinco Passos de Você. O filme se aproxima mais de obras como As Invasões Bárbaras, com uma abordagem mais madura e introspectiva.


Atuação: O Poder de Florence Pugh


Não há como negar que o filme é, em grande parte, carregado pela impressionante performance de Florence Pugh. Como sempre, a atriz traz uma naturalidade inacreditável aos seus papéis, e, em Todo Tempo que Temos, ela domina a tela sem jamais soar artificial. Sua capacidade de controlar o seu tom de voz e as suas expressões faciais em momentos cruciais, como o parto ou o tratamento da doença, é uma das marcas registradas de sua atuação. A forma como ela transita por diferentes fases da personagem, desde a sua juventude até sua luta contra a doença, é simplesmente magistral. Pugh consegue comunicar mais com um olhar do que muitos atores conseguem com diálogos complexos, o que é uma prova de sua maestria.


Por outro lado, Andrew Garfield também entrega uma performance consistente e sensível. Ele cria um Tobias mais introspectivo e tímido, cuja fragilidade emocional frente à doença de Almut é palpável. A interação entre os dois é o coração do filme, e a química entre os atores faz com que o romance seja magnético, mesmo nas situações mais tensas. Garfield também é eficaz ao retratar a luta interna de Tobias ao tentar equilibrar o desejo de cuidar da esposa com suas próprias necessidades e emoções, o que confere profundidade ao seu personagem.


Direção e Coesão Visual


John Crowley, conhecido por seu trabalho em Brooklyn, faz uma direção comedida, mas eficiente, no comando de Todo Tempo que Temos. Ele é responsável pela coesão de todos os elementos visuais – figurino, cabelo, fotografia e, claro, a montagem. Cada detalhe parece cuidadosamente planejado para refletir as mudanças na dinâmica do casal, sendo visíveis não apenas nas performances dos atores, mas também no uso das cores, no figurino e nas locações.


Os cortes de cabelo, por exemplo, não são meramente estéticos, mas sim um reflexo do estado emocional de Almut. A transição de um estilo mais jovem e ousado, para algo mais conservador e finalmente, o corte raspado, acompanha a jornada emocional e física da personagem. O figurino de Tobias, por outro lado, reflete sua natureza mais contida e conservadora, contrastando com a liberdade e o estilo mais arrojado de Almut. Esses detalhes, aparentemente pequenos, adicionam uma camada de complexidade à história e à narrativa.


Fotografia e Paleta de Cores


A fotografia de Stuart Bentley também é um ponto alto do filme. A escolha das cores desempenha um papel fundamental na narrativa visual, com a paleta de cores mais vivas e saturadas refletindo os momentos do passado do casal, quando a vida ainda parecia cheia de possibilidades. Em contraste, o presente é filmado com tons mais frios, cinzas e dessaturados, refletindo a luta da personagem principal e a tensão do presente. A escolha da fotografia não apenas complementa a estrutura narrativa não linear, mas também intensifica a experiência emocional do espectador, guiando-o nas transições temporais de forma quase imperceptível.


O Clichê e a Subtrama


Embora o filme acerte em muitos aspectos técnicos, não se pode deixar de apontar um deslize: o clichê da esposa ambiciosa versus o marido que deseja mais tempo familiar. Embora esta subtrama seja uma tentativa de criar um dilema moral, ela nunca é realmente resolvida de maneira satisfatória, o que a torna um tanto dispensável. A falta de resolução aqui enfraquece um pouco a força da narrativa, deixando o público com a sensação de que o filme poderia ter explorado mais profundamente essa questão, mas optou por se focar mais no romance central.


Conclusão


Todo Tempo que Temos é uma obra cinematográfica que nos lembra que a forma de contar uma história é ainda mais significativa do que a própria história em si. A escolha pela montagem não linear, a atuação brilhante de Florence Pugh e Andrew Garfield, e a direção de John Crowley criam uma obra profundamente sensível e reflexiva sobre o amor, o tempo e as escolhas que fazemos. Embora o filme não escape a um clichê de enredo e deixe uma subtrama em aberto, a sua estrutura narrativa e o desempenho dos atores fazem com que, mesmo nas suas poucas falhas, ele seja uma experiência cinematográfica bastante envolvente e memorável.

quarta-feira, 19 de novembro de 2025

Crítica Técnica: O Poderoso Chefão – Parte I (Francis Ford Coppola, 1972)

 Crítica Técnica: O Poderoso Chefão – Parte I (Francis Ford Coppola, 1972), por Daniel Esteves de Barros

Nota: ★★★★★ (5/5)





Francis Ford Coppola, ao adaptar o romance de Mario Puzo, realiza em O Poderoso Chefão – Parte I uma obra que, embora não busque a assepsia técnica e o rigor geométrico de 2001: Uma Odisseia no Espaço, atinge uma grandeza estética e dramática talvez mais rarefeita — a de um Cinema que respira humanidade, historicidade e densidade moral através de cada gesto, cada sombra e cada decisão diegética.

Se Kubrick opera como um demiurgo científico, Coppola atua como um pintor barroco: luz, corpo e mise-en-scène ordenam-se para produzir uma dramaturgia da carne e da tradição, da memória e da violência ritualizada. O resultado é uma síntese ímpar entre classicismo e modernidade, entre o épico e o íntimo, entre o melodrama e o filme de gângster.

1. A abertura como enunciação estética e política: o plano de Buonassera

A sequência inicial é um manifesto formal. Coppola inicia com um plano americano em progressivo recuo (zoom out reverso), mas é Gordon Willis quem constrói o sentido: o chiaroscuro extremo — mais próximo de Rembrandt do que do noir tradicional — inscreve Buonassera em um espaço de opacidade moral, um limiar entre a crença no Estado e a capitulação perante a autoridade paralela da Máfia.

O traveling retrocede lentamente, expondo gradualmente o dispositivo diegético:

o pedido de justiça como liturgia;

Don Vito como entidade sacralizada;

a família como eixo de organização social mais eficaz do que o Estado moderno.

A mise-en-scène aqui não apenas apresenta personagens: apresenta o sistema de forças que regerá toda a narrativa. Assim como em Laranja Mecânica, o primeiro plano é conceito: é premissa dramatúrgica.

2. O casamento como dispositivo de apresentação: montagem sintática e polifonia dramática

A sequência do casamento de Connie Corleone figura entre as mais elaboradas da historiografia do Cinema clássico. Coppola opera uma montagem sintática, alternando continuamente entre:

o espaço público (a festa, o espetáculo social, a teatralidade italiana)

o espaço privado (o escritório de Don Vito, o confessionário clandestino da máfia)

Essa dialética espacial condensa o programa temático do filme: a coexistência entre o afeto familiar e a brutalidade estrutural da criminalidade organizada.

As entradas de personagens no salão e sua posterior presença no escritório constituem um processo de apresentação elíptica que economiza tempo dramático e simultaneamente define hierarquias, alianças, tensões e códigos éticos. Trata-se de um dos usos mais eficientes de montagem paralela na história do Cinema narrativo clássico.

Brando, por sua vez, compõe um Vito Corleone cuja fisicalidade — as bochechas caídas, a articulação vocal abafada, o gesto econômico — se torna uma gramática corporal autônoma. A performance é menos realista do que icônica: um arquétipo dramatúrgico em estado puro.

3. A construção de cenas antológicas: unidade formal e coerência temática

A grandiosidade do filme não reside apenas na presença de “cenas memoráveis”, mas na coesão estrutural que conecta cada uma delas à progressão dramática. Entre as mais significativas:

a “proposta irrecusável” e o cavalo degolado — síntese visual do poder absoluto;

o jantar no Bronx — turning point psicológico da trajetória de Michael;

a arcádia siciliana — pausa pastoral que antecipa a ruína;

o massacre no pedágio — ruptura brutal que destrói o idealismo residual de Michael;

o batismo — uma das mais sofisticadas execuções de montagem paralela antitética já filmadas;

a porta que se fecha sobre Kay — imagem-síntese da corrupção moral definitiva.

A montagem de Barry Malkin e Peter Zinner opera aqui como uma engenharia narrativa, não apenas encadeando eventos, mas forjando sentidos por meio da contraposição, da simultaneidade e da ironia dramática.

4. A dramaturgia maquiavélica: método, cálculo e frieza estratégica

O roteiro de Puzo e Coppola possui uma construção deliberadamente maquiavélica, no sentido clássico do termo. A ação criminosa não é explosiva, mas processual, burocrática, estratégica. Cada assassinato, cada sequestro, cada represália é:

planejado;

contingenciado;

pesadamente justificado dentro da lógica interna da “honra”.

Essa frieza estrutural confere ao filme um caráter quase administrativo da violência — não há indulgência emocional, apenas cálculo.

O resultado é um dos roteiros mais matematicamente organizados do Cinema moderno.

5. A arcada trágica de Michael Corleone: da ética à corrupção

Michael é o eixo dramático da trilogia e talvez uma das construções de personagem mais densas da história do Cinema. Coppola e Al Pacino operam em três registros:

O jovem patriota idealista — voz suave, postura aberta, moralidade clara.

O herdeiro relutante — rigidez corporal crescente, olhar controlado.

O príncipe das trevas — minimalismo expressivo, frieza absoluta, linguagem corporal aristocrática.

A transformação não é súbita: é um processo trágico no sentido aristotélico, no qual a identidade se desvia ao longo de pequenas inflexões morais, cada uma mais irreversível do que a anterior.

Michael não cai: ele é moldado.

6. Música, fotografia e espacialidade: os pilares estéticos da obra-prima

Nino Rota: o sublime melódico

A trilha funciona como um leitmotiv operístico, conectando a herança italiana, a nostalgia e a tristeza estrutural dos Corleone. “Brucia La Terra” é talvez o ponto mais lírico da composição, funcionando como contraponto emocional à brutalidade intrínseca da narrativa.

Gordon Willis: o “Príncipe das Trevas”

A fotografia define visualmente o ethos da máfia:

sombras profundas e amarelos quentes em Nova York;

luzes mais saturadas e artificiais em Las Vegas;

claridade terrosa, quase impressionista, na Sicília.

Essa cartografia cromática constitui uma geopolítica visual, na qual cada espaço é pensado como extensão simbólica do estado interno dos personagens.

7. Direção de Arte: a espacialização da narrativa

Os cenários são articulados segundo critérios dramáticos rigorosos:

a mansão dos Corleone — solene, densa, quase feudal;

o palacete de Woltz — ostentação vazia e decadente;

Las Vegas — espetáculo capitalista de luz e ruído;

a Sicília — o mito, a origem, a ancestralidade.

A arte aqui não ilustra: ela comenta.

Conclusão: a obra total do Cinema narrativo

O Poderoso Chefão – Parte I é, sob critérios estritamente técnicos e narrativos, uma das produções mais completas já realizadas. O equilíbrio entre estrutura, performance, fotografia, trilha-sonora, direção de arte e rigor dramatúrgico faz com que o filme transcenda o gênero e se torne uma espécie de poema épico-filmico, capaz de sintetizar cultura, história e tragédia familiar em um só organismo estético.

Trata-se, sem exagero, de uma obra que define o Cinema como Arte.

🎬 Crítica Técnica: 2001: Uma Odisseia no Espaço (de Stanley Kubrick, 1968)

 🎬  Crítica Técnica: 2001: Uma Odisseia no Espaço (de Stanley Kubrick, 1968), por Daniel Esteves de Barros

Nota: ★★★★★ (5/5)



Pouquíssimos filmes na história do cinema apresentam uma correlação tão absoluta entre forma e significado quanto 2001: A Space Odyssey. Kubrick elabora aqui uma obra em que a precisão estética não é ornamento, mas coração pulsante da dramaturgia — possivelmente a produção mais tecnicamente perfeita já realizada, mesmo que “perfeição técnica” e “melhor filme” não sejam categorias obrigatoriamente coincidentes. É, sobretudo, um filme feito por um cineasta que domina a linguagem cinematográfica em nível estrutural e destinado a espectadores que compreendem e reconhecem esse domínio.


Mise-en-scène e estrutura cíclica da evolução

mise-en-scène de 2001 talvez seja a mais meticulosamente arquitetada já vista no cinema narrativo. Kubrick não apenas organiza objetos, corpos e luzes no espaço; ele cria significados geométricos, introduzindo a circularidade como princípio estilístico que reflete uma tese filosófica sobre a condição humana: a evolução do homem é cíclica, e justamente por ser cíclica, frequentemente se autolimita.

A circularidade aparece como eixo plástico e conceitual:

  • Travellings circulares que descrevem trajetórias repetitivas;
  • Cápsulas e naves espaciais com design circular, cuja construção rendeu a merecida indicação ao Oscar;
  • Corpos orbitando o espaço;
  • A valsa — especialmente The Blue Danube — cuja dança é circular por princípio coreográfico.

Kubrick converte esse motivo em metáfora visual da busca eterna pela perfeição, um movimento que avança, retorna, repete-se, hesita — e, por isso, raramente chega ao objetivo final.


Do osso à nave: o maior raccord da história do cinema

A ruptura entre o capítulo paleolítico e o capítulo tecnológico é estruturada no que se convencionou chamar de maior elipse temporal já proposta em um raccord, quando um osso atirado ao céu transforma-se instantaneamente em uma nave espacial. A operação, além de brilhante do ponto de vista sintático, sintetiza o argumento de Kubrick:
o homem evoluiu na forma, nunca na essência.
A ferramenta muda; o impulso — sobrevivência e poder — permanece.

A origem primitiva do gesto, portanto, não desaparece: ela apenas se revestiu de tecnologia.


Tecnologia como coautora da existência

Kubrick mostra uma humanidade que, ao distanciar-se de seu passado animal, transfere o protagonismo existencial à tecnologia. Essa tecnologia, embora eficiente como vetor evolutivo, transforma-se em ameaça quando elevada à condição de agente ético.

E aqui surge HAL 9000 — não como vilão arquétipo, mas como produto lógico do próprio homem, um sujeito maquínico que age dentro dos limites de sua programação. HAL não possui crueldade; possui coerência algorítmica. Sua “rebelião” é, na verdade, um espelho incômodo: a máquina apenas preserva sua existência do mesmo modo como o Homem sempre fez, desde o primeiro osso brandido pelo Homo habilis.


O monólito: perfeição, mistério e a crise da ciência

A presença do monólito negro introduz uma dimensão de terror metafísico que reconfigura a obra momentaneamente como um cosmic horror de altíssima sofisticação. O uso de Requiem for Soprano, Mezzo-Soprano, Two Mixed Choirs and Orchestra, de György Ligeti, transforma o objeto em uma entidade que não comunica, não responde e não se adapta ao olhar humano; ele simplesmente existe e confronta.

Dentre as diversas leituras possíveis, a interpretação do monólito como representação geométrica do ideal de perfeiçãoé especialmente fecunda. Alto, estreito e negro, ele sintetiza:

  • a verticalidade da busca,
  • a opacidade do desconhecido,
  • o impulso humano por transcendência.

Note-se que:

  • Ao ser visto pelo Homem-Macaco, resulta em evolução imediata.
  • Ao ser visto por humanos tecnologicamente “avançados”, resulta apenas em ruído e fracasso.

Kubrick sugere que a humanidade, presa ao ciclo de substituições — religião → ciência → tecnologia—, ainda não está preparada para compreendê-lo, pois continua a buscar no exterior aquilo que só poderia ser descoberto no interior, como já afirmava Nietzsche.


HAL 9000 e a dramatização visionária da inteligência artificial

A seção dramática envolvendo HAL 9000, Dave e Frank funciona como núcleo de ficção científica hard. O roteiro de Kubrick e Arthur C. Clarke, profético em 1968, antecipa com surpreendente precisão o conflito moderno entre humanidade e inteligência artificial.

HAL é um antagonista injustiçado na historiografia popular. Ele não é movido por malícia; é funcionalinstrucionalregido por parâmetros contraditórios impostos por humanos. Seu suposto “ato homicida” não é violência gratuita — é autopreservação lógica. Assim, HAL é a mais perfeita ilustração da tese kubrickiana: a tecnologia é apenas um prolongamento ampliado do homem.


O som como expressão do desconhecido

A mixagem de som de 2001 é um tratado de design auditivo. O contraste entre:

  • a respiração controlada dentro da nave, e
  • a respiração ofegante e estridente fora dela,

cria uma diegese sonora baseada na percepção do território: seguro no interior, ameaçador no exterior. O som, aqui, substitui diálogos e funciona como marcador simbólico do medo humano diante do desconhecido, o mesmo sentimento que acompanha cada encontro com o monólito.


Efeitos visuais como linguagem e não como espetáculo

Os efeitos visuais, premiados com o único Oscar que a obra recebeu — um absurdo histórico —, não são pirotecnia: são sintaxe cinematográfica. A sequência do “corredor estelar” é um dos momentos mais radicais da história do cinema: a imagem abandona a representação objetiva do real e passa a representar a própria dissolução da matéria, antecipando a transmutação do ser.

É cinema puro: luz, tempo, movimento, sensação.


A mise-en-scène final e o nascimento do Übermensch

A cena final, no ambiente branco, elegante e quase museológico, condensa a genialidade kubrickiana: um espaço arquitetonicamente perfeito, com simetria absoluta, objetos alinhados, estátuas estáticas — tudo contrastado com uma cápsula espacial, como se o passado e o futuro coabitassem o mesmo quadro.

Aqui se dá a metamorfose nietzschiana:
do Homem ao Super-Homem,
ou, nos termos da cultura pop, 
ao Star Child.

A trilha Also sprach Zarathustra — alusão direta ao texto fundador do conceito de Übermensch — ressoa enquanto a Criança Estelar retorna seu olhar à Terra. Não mais à procura de respostas fora de si, mas com a intenção de olhar para a humanidade, algo que Kubrick já denunciava em A Clockwork Orange: o homem que coloniza o cosmos enquanto negligencia seu próprio lar.


Conclusão

2001: Uma Odisseia no Espaço é mais que um filme — é uma tese audiovisual sobre a evolução humana, sobre a falência de seus ciclos e sobre a possibilidade de transcendência. Sua precisão técnica, sua arquitetura formal e sua ousadia filosófica o colocam no topo do cinema moderno. Kubrick transforma imagem, som e movimento em pensamento puro.

Tem-se aqui então uma perfeita alegoria espacial da evolução humana do ponto de vista nietzschiano.